segunda-feira, 28 de junho de 2010

Esquizofrenia moral em tempos de calamidade

É desesperador quando bate uma noção da realidade que vivem hoje os animais não humanos do mundo. Não é fácil interceptar essa noção, só acontece às vezes (de fato, parece ser quase tão difícil quanto captar a noção da morte, especificamente aquela em que não se espera que exista nada além).


A situação é tão urgente quanto grave. Cerca de oito vezes mais animais do que a população humana do mundo são continuamente sujeitos a maus tratos, exploração, confinamento, morte - todo ano. A cada minuto, a cada expiração e inspiração que damos, uma quantidade inconcebível de animais sofre horrorosamente... Sangra, é amputado, perde o filho, é castrado a sangue frio, perde a mãe, recebe um ferro quente, padece de uma doença dolorosa, leva porrada, tenta abrir as asas e não consegue, tenta de novo e não consegue, tenta no dia seguinte e novamente não consegue, entra em psicose pela permanente dificuldade de se mexer...


O que é isso que vivemos hoje, agora, senão um momento de calamidade, de emergência? Um mundo em que 50 bilhões de seres sencientes são injustiçados dessa forma não se pode considerar civilizado, não pode sequer se considerar aceitável ou minimamente tolerável. A injustiça que, globalmente, se comete hoje é no mínimo comparável àquela que se infligiu em quase qualquer dado momento da história das civilizações, nas guerras, regimes totalitários, repressivos e de escravidão.


Será que, se existíssemos nos períodos em que tais abusos ocorreram de forma generalizada, algum de nós ficaria confortavelmente sentado na sua cadeira, vivendo como se o mundo fosse justo, ou como se fosse injusto mas você não pudesse fazer nada por isso? Será que dormiríamos em paz, nos omitindo diante (ou até agindo em favor) de uma realidade flagrante que destroça todos os alicerces da nossa ética, compaixão, respeito e bom senso?? Por que, então, conseguimos fazer isso hoje?




Por Deus, será que negaríamos o caráter de calamidade se essa realidade fosse majoritariamente com cachorrinhos dóceis, em vez de com porcos, bois, ovelhas, galinhas e mais galinhas?


Será que a nossa espécie, com a cognição mais sofisticada do mundo, é tão limitada e primitivamente emocional a ponto de não se impor a óbvia constatação de que cães e porcos merecem o mesmo respeito? Que cegueira é essa??


Peço desculpas se neste texto fujo um pouco à proposta e ao estilo deste blog, mas fui invadido por uma terrível inquietude, uma sensação de estarmos profundamente enganados (até mesmo aqueles que protegem animais) por viver este mundo como se ele não fosse "tão mal", como se não estivéssemos em meio a uma calamidade dramática e inadmissível. Porque acredito que estamos. Este mundo é, sim, mais ou menos "tão mal" quanto o mundo da escravidão humana, o mundo da Segunda Guerra e do holocausto, o Brasil pós golpe de 64 e qualquer outro espaço e tempo em que se tenham cometido tamanhas injustiças, barbaridades e impropérios.

domingo, 9 de maio de 2010

Leite pode, né?


Um dos equívocos mais comuns das pessoas que param para praticar, criticar ou pensar no vegetarianismo é a presunção de que não pode haver implicações éticas na produção de leite. Partindo desse pressuposto errado, muitos julgam o veganismo uma postura radical, desnecessária e exagerada. Não é.

Essa presunção geralmente se baseia no raciocínio simplista de que "pra produzir o leite, não mata-se a vaca". Existem duas realidades básicas com que precisamos nos confrontar para quebrar este preconceito.

1 - Mata-se a vaca, sim. Todos os animais usados pela indústria se desgastam e, num certo momento, passam a não ser tão produtivos quanto o produtor gostaria. Então o produtor manda-nos para o abate sem pestanejar, e coloca animais novos no lugar. Como um telefone celular que começa a dar defeito e você troca.

2 - Enquanto a vaca não torna-se improdutiva, ela tem uma vida miserável. A maior parte do tempo confinada em espaços pequenos, com mangueiras elétricas ordenhadeiras acopladas nas suas tetas. Grande parte das vacas sofrendo de mastite, inflamação das mamas devida à ordenha exagerada. Todas sendo emprenhadas a uma frequência alucinante e perdendo seus filhos apenas 24 horas após o parto, apesar de seu cuidado maternal ter uma tendência natural a durar meses. Todas urrando desesperadamente ao ser separada de seus filhotes, de forma muito semelhante ao desespero de uma mãe humana ao ser forçadamente separada do seu bebê.

Esta vaca, que passará por várias separações forçadas e um sofrimento inimaginável durante toda a sua vida, poderá chegar aos cinco anos de idade - quando já estará exaurida e será mandada para o abate.

Portanto, a resposta é não - leite não pode. Um copo de leite ou um pedaço de queijo vêm com tanto sofrimento quanto um pedaço de carne, senão mais. A propósito, comer apenas 100 gramas de queijo equivale a beber de 2 a 2,5 litros de leite.

Não devemos ter papas na língua ao falar isso, nem devemos ter o cinismo de fingir que não sabemos disso. Se você não sabia, agora sabe.



Esta é uma homenagem de Dia das Mães às vacas leiteiras - tão mães quanto as mães humanas, mas diariamente sentenciadas a um dos maiores suplícios que uma mãe pode sofrer: a separação forçada dos seus filhos. O cuidado maternal é um comportamento natural extremamente significativo para grande parte dos mamíferos e aves - não apenas para os humanos. Se você ainda não acredita nisso, ou acredita mas não assimila, sugiro visitar uma fazenda e arrancar um bezerro recém-nascido de perto da sua mãe. Os urros da mãe falarão por si.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Eu quero ajudar os animais! O que eu faço??

Existem dezenas de bilhões de animais sofrendo consideravelmente enquanto você lê este blog. E muito pouca gente fazendo alguma coisa por eles. Qualquer iniciativa de ajudar os animais deve, então, ser bem aproveitada, informada e otimizada.


A primeira (e mais fácil, menos time consuming) coisa que você pode fazer é mudar os seus hábitos de consumo. É verdade, todo hábito é um pouco difícil de mudar, mas se você quer fazer algo pelos animais, certamente essa opção lhe custará menos do que se dedicar a algum trabalho voluntário.


Por "hábitos de consumo" entenda-se principalmente os alimentares, mas também o hábito de comprar cães ou gatos em pet shops (não compre - adote), o nojento ato de abandoná-los quando tornam-se inconvenientes, a visita a um rodeio ou a um circo com animais, o engaiolamento de aves e até mesmo o pagamento da entrada do jardim zoológico.


Portanto, esta primeira forma de ajudar os animais consiste, simplesmente, em deixar de ser cúmplice. Como falei no primeiro post deste blog, quase todos nós somos atores da exploração animal. Você pode - e deve - deixar de ser um ator da exploração animal, se quer ajudá-los. Então, a primeira oportunidade é a de deixar de fazer (o mal).


A segunda é a de fazer (o bem). Nesse caso existe um mundo de ativismo a ser descoberto, uma diversidade imensa de coisas que se pode fazer - desde ações independentes e inseridas no seu dia-a-dia (falar sobre o assunto para as pessoas, educar com o seu exemplo vegetariano, adotar animais, doar para ONGs atuantes, etc.) até ações em grupo e mais planejadas (panfletagem, voluntariado em ONGs, participação em eventuais manifestações, resgate e adoção de cães e gatos, etc.). Uma outra forma independente e eficiente de fazer algo pelos animais é produzir materiais que provoquem a reflexão a respeito da situação dos animais neste planeta, e soltá-los na internet. Pra quem gosta de escrever, programar, desenhar ou editar vídeos e imagens, é uma ótima idéia.


Aos poucos, colocarei aqui mais informações a respeito de como tornar-se vegetariano sem prejuízos nutricionais, como lidar com os clichês pró-exploração animal, como entrar em contato com ONGs que se encaixem no que vc gostaria de fazer, entre outras informações de utilidade prática. Mas enquanto isso, você pode ir pesquisando no Google :)

domingo, 4 de abril de 2010

Entendendo as dissidências do movimento de proteção animal



"Você é bem-estarista ou abolicionista?" - é o que se escuta mais freqüentemente quando alguém pretende averiguar sua orientação filosófica a respeito da proteção dos animais. Estas - e outras - dissidências do movimento de proteção animal são freqüentemente colocadas como abordagens absolutamente imiscíveis, antagônicas entre si e até mesmo - por incrível que pareça - inimigas.

Mas que história é essa de "bem-estarista" e "abolicionista"?


Bem-estarismo X abolicionismo
Segundo o filósofo do direito norte-americano Gary L. Francione, que é declaradamente abolicionista, o bem-estarismo (welfarism) aceita o uso humano dos animais na medida em que eles sejam tratados de forma mais "humanitária", isto é, que se procure promover algum bem-estar dos animais explorados. O abolicionismo, por sua vez, sustenta que o uso e a exploração dos animais, per se, não são moralmente justificáveis e, portanto, devem ser abolidos. A postura abolicionista se fundamenta na defesa dos direitos dos animais, o principal dos quais seria o direito primário de não ser propriedade.

Abolicionismo.1
Uma parte dos abolicionistas acredita que as medidas não-abolicionistas que regulamentam e restringem o uso dos animais, proibindo abusos e melhorando as condições de animais explorados, são importantes a curto prazo - por enquanto que estamos longe de atingir a abolição. Contudo, se de fato abolicionistas forem, serão grandes entusiastas das medidas diretamente orientadas à abolição, e serão também praticantes e defensores do veganismo (a opção moral de não consumir produtos animais).


Abolicionismo.2
A outra parte dos abolicionistas discorda de qualquer medida (relacionada a animais) que não seja explicitamente abolicionista. Ou seja, reprovariam uma mudança direcionada exclusivamente à melhoria do bem-estar (por exemplo, a obrigatoriedade do uso de anestésicos em procedimentos mutiladores em granjas). Seus representantes argumentam que as pequenas conquistas de bem-estar animal atrasam a abolição, pois deixam os consumidores de produtos animais com a consciência mais leve (ou com a consciência anestesiada) e, portanto, menos propensos a mudar de hábitos de consumo. Em última análise, portanto, os animais seriam prejudicados, porque a sua exploração perpetuar-se-ia.


Os rótulos
Hoje, os rótulos atribuídos compulsivamente pelos próprios protetores de animais geram uma grande polarização no movimento. Na verdade, a própria distinção categórica entre bem-estaristas e abolicionistas, que eu aqui faço, já é negativa no sentido de que alimenta esta polarização, mas será aqui mantida em nome do fácil entendimento. Alguns abolicionistas (do segundo grupo explicado, acima) diriam que: ou você é vegano, abolicionista, convicto e intolerante às tão-somente mitigações do sofrimento (a estes alguns chamariam de "radicais", o que eu discutirei em um post futuro), ou você não é nada. Um tanto contraproducente esta forma de ver as coisas, uma vez que fecha as portas para a manutenção de boas e frutíferas relações de cooperação entre estes dois principais segmentos do movimento. Por outro lado, bem-estaristas não-vegetarianos freqüentemente referem-se aos abolicionistas como radicais, exagerados e emotivos - o que é uma afirmação não somente contraproducente mas também falsa.


A exagerada suavização do problema
Apesar de preferir evitar os rótulos por acreditar que eles são geralmente negativos para a causa, é impossível não ressaltar que o bem-estarismo puro é, de fato, uma postura incoerente com o verdadeiro respeito aos animais. Sob o ponto de vista da lógica e da ética, é inconsistente a postura estritamente bem-estarista que assume que "se não maltratamos tanto, não faz mal". Claro que faz mal! As galinhas, porcos e vacas são animais sencientes - de forma muito semelhante ao seu cão, seu gato, a um chimpanzé ou a você mesmo. Têm interesse em ser livres e em que não se lhes causem dor ou sofrimento. Portanto, da mesma forma que faz mal você explorar e confinar o seu cão ou o seu vizinho (ainda que sem maus tratos explícitos e gritantes), faz mal, sim, que utilizemos os animais como objetos ou meros meios para satisfazer nossos interesses (ainda que sem maus tratos explícitos e gritantes).


O certo e a prática
A abolição da escravidão animal é necessária. Mais do que isso, ela é urgente. Um mundo com paz só será possível se, antes, os bilhões de animais hoje explorados deixarem de ser coisas, commodities, instrumentos; passarem a ter seu valor inerente respeitado, em detrimento daquele valor que lhes é atribuído sob parâmetros e interesses humanos. Enquanto cultivarmos o status de propriedade dos animais e a subconsideração dos seus interesses, estaremos cultivando a própria violência.


Contudo, ainda estamos em 2010. Gostaria que já estivéssemos em 2030, quando a humanidade já terá refletido muito mais sobre a exploração animal do que fez até hoje. Quando, talvez, 50 ou 70% da população brasileira ao menos saberão o que acontece com os animais para que um simples e inofensivo (?) ovo chegue às prateleiras do supermercado. Quando, talvez, 30 ou 40% da população brasileira ao menos lembrarão dos interesses dos animais quando estiverem diante de um pedaço de carne à venda. Aí, sim, possivelmente teríamos cenário para uma atitude abolicionista inequívoca e intolerante a meios-termos e pequenos-ganhos.


Hoje, entretanto, a preocupação mais importante - e que deve ser objeto do maior número de esforços - deve ser a informação dos consumidores, a reflexão que se segue à informação e, por fim, a mudança de hábitos daí decorrente - mesmo que não seja uma mudança imediata para o veganismo. Sei que a galinha "de capoeira" normalmente não vive plenamente, e nem morre de velha, mas eu ficaria muito feliz se visse que todos os que me rodeiam se recusam a comer frangos e ovos industriais, ainda que comam os de capoeira.


Por isso, acredito que a postura mais sábia e estratégica - ou seja, aquela que chega mais perto de atender aos interesses dos animais enquanto indivíduos -, em 2010, é aquela que tenha um fim abolicionista, mas tolere os meios bem-estaristas. 


O mais importante
Em tempo: devemos lembrar que não faz nenhum sentido refletir sobre as vertentes do movimento de proteção animal ou questões teóricas mais profundas se você não olha para você mesmo antes. Afinal, como disse certa vez a Nina Rosa, presidente de instituto homônimo e idealizadora do filme A Carne é Fraca, "Para os animais não importa o que você pensa ou sente; para eles, importa o que você faz". Mãos à obra!

terça-feira, 16 de março de 2010

Afinal, por que o especismo é errado?


Recentemente, em meio a um caloroso discurso em defesa dos animais numa conversa com um amigo, usei repetidamente o conceito de especismo, que significa a discriminação feita utilizando-se a espécie biológica como critério. Um termo, na verdade, cunhado em analogia aos seus irmãos racismosexismo e outras formas de discriminação.

Em uma certa altura, enquanto me referia ao especismo como inaceitável e como responsável pela forma que tratamos os animais, meu caro amigo me interrompeu. Uma pergunta essencial não havia sido respondida, e impedia a continuidade de um debate consistente.



- Mas, afinal, por que o especismo é errado?

Minha resposta segue abaixo.



Primeiro peço que vc leia minha resposta desarmado, sem se permitir exercer o conservadorismo cego (todos temos um pouco) de dizer coisas como "Ah, peraí! Isso é ridículo", "Fala sério", "Essa é manjada" ou algo do tipo, antes de refletir com tranquilidade.

Bem, vamos fazer o caminho inverso, pra chegar ao especismo no final:

Por muito tempo, as mulheres tiveram negados direitos que os seus contemporâneos masculinos tinham. Hoje, na maior parte do Ocidente, é consensual que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, então vou tomar como pressuposto que aqui todos concordam com isso.

Imagino que nós concordemos, contudo, que a igualdade de direitos entre homens e mulheres não pode ser consistentemente expandida para animais não-humanos. Mulheres têm direito, por exemplo, a voto, porque elas são tão capazes de tomar decisões racionais a respeito do futuro quanto os homens; cachorros,por outro lado, são incapazes de entender o significado de votar, então eles simplesmente não podem ter esse direito. Existem inúmeras outras características que são idênticas entre homens e mulheres, e imensamente diferentes entre os humanos e os outros animais - o que parece justificar bem a concessão de uma quantidade muito maior de direitos comuns ao homem e à mulher, do que direitos comuns ao humano e ao não-humano.

Certamente, existem diferenças significantes entre humanos e outros animais. Essas diferenças, de fato, devem originar uma série de diferenças nos direitos que cada um tem. Porém, perceba, existem também diferenças significantes entre homens e mulheres, em menor grau - que deverão, portanto, originar diferenças (em menor quantidade) de direitos entre estes dois grupos. Não é surpresa para ninguém que homens e mulheres nem sempre tenham os mesmos direitos, repare: muita(o)s feministas defendem que mulheres têm o direito ao aborto, caso desejem. Não decorre disso, contudo, que tais feministas devem também defender o direito ao aborto para homens. Uma vez que o homem não tem a capacidade de abortar, não tem sentido falar sobre o seu direito de abortar. Uma vez que o cachorro não tem a capacidade de votar, não tem sentido falar sobre o seu direito de votar.

O conjunto de direitos que se deve dar a homens e mulheres, portanto, não é o mesmo; não obstante, falamos de "igualdade entre os sexos". E não há nada de errado nisso - podemos, mesmo, falar de igualdade entre os sexos. O princípio da igualdade entre dois grupos não requer que o tratamento aos dois grupos seja perfeitamente igual; afinal, podem haver diferenças relevantes, que gerarão diferentes tratamentos e, portanto, diferentes direitos. É o caso do direito ao aborto (repare que você não precisa ser partidário do direito ao aborto para concordar com o raciocínio), e é também o caso do direito ao voto. O princípio da igualdade requer simplesmente a igual consideração dos interesses. Não há, portanto, nada de absurdo em expandir o princípio da igualdade aos animais não-humanos.

Essa última conclusão costuma soar incômoda, em virtude do paradigma de exploração animal - e de igualdade humana - estabelecido na nossa sociedade. A maioria de nós se opõe decididamente ao racismo e ao sexismo. Esta postura parece óbvia - mas, afinal, o que está na raiz desta nossa oposiçãoPor que, exatamente, essas formas de discriminação são erradas? O que nós queremos dizer quando afirmamos que todos os humanos, independente de sexo, cor ou credo, são iguais? Afinal, por mais que sejamos entusiastas da igualdade entre humanos, temos que enfrentar o fato de que os humanos nascem com cores, formas e tamanhos diferentes. Não apenas isso, têm eles também capacidades intelectuais diferentes, aptidões diferentes, diferente sensibilidade às necessidades alheias, e diferentes habilidades de comunicação. Em resumo, se nós fôssemos basear nossa demanda por igualdade baseando-se na *efetiva* igualdade entre os seres humanos, encontrar-nos-íamos em maus lençóis.

Mas, então, será que a solução para este conflito lógico é conferir diferentes direitos a diferentes humanos - ainda que dentro do mesmo grupo étnico, ou do mesmo gênero? Acredito que não. Se fôssemos assim proceder, poderíamos, por exemplo, traçar um limiar de Q.I., abaixo do qual os humanos seriam feitos escravos daqueles com maior pontuação. Evidentemente, nenhum de nós aceitaria o uso deste critério.

A única solução que resta para o conflito, portanto, parece ser aceitar que a nossa reivindicação por igualdade não depende de inteligência, força física ou aptidãartística - da mesma forma que não depende de cor ou sexo. A igualdade não é a constatação de um fato; é uma idéia moral. Não há qualquer razão lógica para assumir que uma diferença factual qualquer entre dois indivíduos justifique diferenças na consideração que nós damos aos seus interesses. Diferenças de aparência ou de faculdades intelectuais não justificam tais diferenças de consideração.

Foi exatamente a esta conclusão que muitos abolicionistas chegaram, para combater o racismo que alicerçava a escravidão. Foi também a esta conclusão que feministas norte-americanas chegaram em meados do séc. XIX, para então argumentar em favor dos seus direitos.

O especismo é errado pelo mesmo motivo. De forma não só análoga, mas idêntica, ao racismo e ao sexismo, trata-se uma forma de discriminação de tratamento moral baseada em critérios irrelevantes para tanto.

Humanos e, digamos, vacas, têm significantes diferenças de aparência, de formas de expressão, cognição e linguagem, entre outros aspectos. Por este motivo, vacas não têm vários direitos que nós, humanos, temos: direito à informação, direito à cultura, direito ao voto, direito à educação.

Contudo, evidências empíricas e científicas - inúmeras - mostram que humanos e vacas têm uma percepção muito semelhante à dor e ao sofrimento psicológico, e uma percepção à alegria semelhante em certo grau - capacidades de percepção a que chamamos de senciênciaO que falta, de fato, são evidências do contrário. Por esta razão, vacas e humanos têm, ambos, o direito a não se lhes ser causado sofrimento ou dor de qualquer natureza. Além disso, vacas têm a capacidade - e a motivação - para desempenhar comportamentos reprodutivos, sociais, ambulatórios e outros; e é por esse motivo que as vacas têm o direito à liberdade, isto éo direito a o ser propriedade.

Assumir que um animal não tem direito a ser livre de dor e sofrimento baseando-se na sua diferente espécie biológica, portanto, não faz qualquer sentido, e é um tipo de discriminação tão inconsistente e equivocado quanto o sexismo ou o racismo. Igualmente equivocado é assumir tal diferença de direitos baseando-se na capacidade cognitiva, artística ou mesmo na capacidade de "auto-consciência". Os únicos critérios relevantes para a concessão de direitos são os interesses (na medida em que tais interesses não comprometam o direito do outro), e os animais não humanos seguramente têm interesse em não sofrer e não ser confinados.


Basicamente, é isso. Bebi no colega Peter Singer pra responder à tua pergunta com mais clareza; espero que tenha dado pra entender. Termino com um princípio geral do direito chamado isonomiaque já é amplamente aceito entre nós para a espécie humana, e está pronto para ser consistentemente aplicado aos demais seres vivos. É só a gente querer.


Deve-se tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades.



Abraço.

-x-

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A que este blog se propõe?

Este blog tratará de temas pertinentes à exploração animal, vegetarianismo, veganismo, defesa animal e assuntos correlatos. Pretendo, aqui, trazer ao debate as falácias, os clichês, polêmicas, mitos, tabus, equívocos, argumentos, controvérsias, qüiprocós, questionamentos, confusões e mal-entendidos que permeiam a argumentação de segmentos da defesa animal e, também, o discurso de pessoas e atores sociais que são coniventes com a exploração animal. Pôr as cartas na mesa e colocar os pingos nos is, analisando argumentos e pseudo-argumentos relacionados à exploração e à defesa animal, é o objetivo deste espaço.

Mas por que este debate é tão importante?

A cada minuto (menos tempo do que o que você vai demorar lendo este post), são confinados e morrem no mundo mais de 100 mil animais não humanos, para o consumo humano de suas carnes e derivados. Por ano, este número soma mais de 50 bilhões (mais de sete vezes a população humana mundial). Além destes, uma quantidade astronômica e incalculável de animais marinhos, de rua e selvagens são explorados todos os dias sob as justificativas de alimentação, paladar, controle de zoonoses, aquarismo, entretenimento, comércio de peles e outras.

Compreendida a ordem de grandeza desta exploração, fica faltando apenas reconhecer a senciência (capacidade de sofrer e experimentar prazer) dos animais para que se torne óbvia a sua enorme significância moral.

Questões moralmente significantes devem ser debatidas de forma clara e justa por - pelo menos - todos os atores nela diretamente envolvidos. É essencial para um escravocrata, por exemplo, que ele procure argumentar consistentemente em favor do regime de escravidão praticado nas suas propriedades, se quiser continuar praticando aquilo sem o repúdio de outros segmentos da sociedade. Um vivisseccionista (pesquisador que submete animais a experimentos nocivos) deve, por sua vez, ser capaz de construir uma argumentação lógica, completa e ética se desejar sustentar a sua metodologia de pesquisa. Fazendo uma analogia mais tangível nos dias atuais - e quão atuais -, um alto oficial do Exército que afirme que um homossexual não deve fazer parte das Forças Armadas deve ter argumentos muito bons para sustentar esta discriminação. Ou seja, cabe aos atores (diretos ou não) destas práticas substanciar uma discussão ética a seu respeito.

Acontece que, na exploração animal - diferentemente de em outras formas de discriminação e violência -, quase todos nós somos atores. Afinal, quase todos nós estimulamos direta ou indiretamente a criação, a experimentação, o confinamento e o abate de animais ao pagar por um produto ou serviço deles obtidos - carne, remédio, rodeio, queijo, frango, cosmético, ovo, couro, peixe. Ora, a mim parece que o dever moral de um indivíduo em tomar partido a respeito de uma determinada atividade é tão maior quanto maior for a sua participação nesta atividade. Logo, a maioria dos humanos deste planeta certamente tem um inequívoco dever moral de debater a exploração animal.

E se esta obrigação moral é real, a "tomada de partido" não pode ser feita às cegas, sob os mantos da ignorância ou da omissão; deve, em vez disso, ser embasada pelo máximo de informação e reflexão possível. Somente assim alguém pode se posicionar com consistência a respeito de um assunto tão complexo. Não nos faculta protelar a justa reflexão a este respeito, porque nós participamos todos os dias dessa exploração.

Sigamos debatendo.